4. Por que virtualizar?
Pode-se dizer que a capacidade de simbolizar, que emerge em nossa espécie entre 45 e 70 mil anos atrás, é o princípio da virtualização. É quando o lugar deixa de se restringir ao espaço físico-ambiental da geografia, rompendo com a relação lugar-espaço com o que se apresenta aos olhos.
A religião pode ser uma interessante referência nesse sentido. Teorias antropológicas da religião nos mostram que esta teria surgido da incompreensão dos fenômenos oníricos, quando mortos e vivos se encontram em um lugar: o cérebro, onde ocorrem os fenômenos oníricos. E daí em diante estamos sempre construindo lugares utópicos, atualizações de registros neurológicos.
A emergência do espaço virtual informático implica em novas relações econômicas, nas quais parece-se querer destituir a importância daquilo que é concretamente produzido. Marxistas radicais se debatem para tentar compreender o que aconteceu com a mercadoria, com a industria, com o dinheiro e, enfim, com o ambiente econômico. Sem dúvida, ele não é mais o mesmo. Por outro lado, a lógica ainda se mantém. Não a lógica da produção capitalista descrita por Marx, mas a lógica da superioridade daqueles que detém o saber legitimamente constituído, como nos diz Foucault. Esse saber constituído, a partir das condições de poder e normas para a produção de saber de cada sociedade, é que vai possibilitar o surgimento das máquinas que vão, num primeiro momento, modificar a estrutura produtiva voltada para a mercadoria e, em nosso tempo, para a informação, que ainda assim se produz mediada por máquinas concretas, que precisam ser fabricadas.
Pode-se entender a tentativa de virtualização como uma estratégia de poder e de exclusão. Mesmo na anárquica internet, ainda que não haja mecanismos de controle de conteúdo eficientes, já se aplica o critério de classificação dos sites, interditando aqueles que dizem o que não pode ser dito, conforme as regras da sociedade e da distribuição do poder.
A cibercultura, embora uma síntese complexa de alguns elementos presentes na cultura técnica e simbólica, não está livre das condições as quais emerge e, menos ainda, dos seus elementos constitutivos. Parece querer esconder aos olhos aquilo que a produz. O argumento de Kim defende como a cibercultura, e outros termos de prefixo ciber, são como se fossem releituras atualizadas e junções de conceitos já existentes:
Assim podemos, por exemplo, entender que o consenso social acerca do que é correio eletrônico (e-mail) está dentro dos limites de significações de “eletrônico” e “correio” (electronic e mail), sobre os quais já havia um consenso social. O mesmo ocorre com ciberespaço (cybernetics space) ou ciborgue (cybernetics organism). São exemplos onde os termos que sintetizam o discurso técnico-científico (“e” de electronic ou “cyber” de cybernetics) adquirem novas conotações e engendram significados inéditos na sua conjunção com antigos significantes (mail, space, organism), projetando o sistema antigo de interpretação da realidade sob novas formas, dentro das dadas possibilidades históricas e culturais de significação. O que comumente tem se chamado de “cibercultura” é uma resposta positiva da cultura na criação de uma “nova ordem do real” frente aos novos contextos práticos que desafiam as categorias tradicionais de interpretação da realidade (KIM, 2004, p.207).
A cibercultura surge em um espaço, não necessariamente o ciberespaço, e em um tempo. Sendo assim, o mito que se forma em torno desse conceito, pode ser desvendado, revelando-se a sua pretensão de universalidade e de existência desde sempre. Percebe-se que o que produz a cibercultura, e não somente onde ela se reproduz e se efetiva, o ciberespaço, também este é produto da cultura, de um tempo e de um espaço e, portanto, a eles subordinados.
A literatura ciberpunk e a ficção científica em geral, nos últimas anos[1], vem apresentando um risco, uma ameaça, de que as máquinas tornem-se capazes de se reproduzirem independentemente do ser humano. Seria a gênese de uma nova espécie na terra. Por trás dessas narrativas, podemos perceber a ilustração da possibilidade da revolta do próprio sistema, hoje sustentado nas máquinas, na tecnologia, contra o ser humano. Algo do tipo a bomba atômica que destrói o planeta, com a tecnologia que era para ser o bem. Contudo, a nova versão do temor tecnológico é mais sutil.
Um outro mito relacionado a cibercultura, e que lhe dá forma até os dias atuais, implicando inclusive em rituais que reportam a uma certa devoção e fidelidade às origens, é a importância da contra-cultura americana na construção da internet. Por esse mito, haveria o desejo de apropriação social das tecnologias, não as deixando por conta de militares e acadêmicos exclusivamente. Assim, as tecnologias cumpririam uma função social, e a essa origem estariam ligadas as características e o modelo de sociabilidades presentes nas redes, assim como as invasões hacker´s e as manifestações cyberpuk´s que seriam um tipo de celebração das origens e um esforço para manter a rede anárquica, insegura para os infiéis que querem transformá-la em um instrumento meramente operacional a serviço do sistema econômico, tanto a nível macro quanto micro.
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[1] Podemos listar: Neuromancer, Matrix, Eu, Robô, o Homem Bicentenário, A.I.,etc.
Fonte: Revista Espaço Acadêmico
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